terça-feira, 31 de janeiro de 2012

O Lixo


Luís Fernando Veríssimo
Encontram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a primeira vez que se falam.
- Bom dia...
- Bom dia.
- A senhora é do 610.
- E o senhor do 612
- É.
- Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente...
- Pois é...
- Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo...
- O meu quê?
- O seu lixo.
- Ah...
- Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena...
- Na verdade sou só eu.
- Mmmm. Notei também que o senhor usa muito comida em lata.
- É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei cozinhar...
- Entendo.
- A senhora também...
- Me chame de você.
- Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns restos de comida em seu lixo. Champignons, coisas assim...
- É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas, como moro sozinha, às vezes sobra...
- A senhora... Você não tem família?
- Tenho, mas não aqui.
- No Espírito Santo.
- Como é que você sabe?
- Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo.
- É. Mamãe escreve todas as semanas.
- Ela é professora?
- Isso é incrível! Como foi que você adivinhou?
- Pela letra no envelope. Achei que era letra de professora.
- O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo.
- Pois é...
- No outro dia tin ha um envelope de telegrama amassado.
- É.
- Más notícias?
- Meu pai. Morreu.
- Sinto muito.
- Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempos não nos víamos.
- Foi por isso que você recomeçou a fumar?
- Como é que você sabe?
- De um dia para o outro começaram a aparecer carteiras de cigarro amassadas no seu lixo.
- É verdade. Mas consegui parar outra vez.
- Eu, graças a Deus, nunca fumei.
- Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimido no seu lixo...
- Tranqüilizantes. Foi uma fase. Já passou.
- Você brigou com o namorado, certo?
- Isso você também descobriu no lixo?
- Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora. Depois, muito lenço de papel.
- É, chorei bastante, mas já passou.
- Mas hoje ainda tem uns lencinhos...
- É que eu estou com um pouco de coriza.
- Ah.
- Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo.
- É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é.
- Namorada?
- Não.
- Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Até bonitinha.
- Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.
- Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer que ela volte.
- Você já está analisando o meu lixo!
- Não posso negar que o seu lixo me interessou.
- Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria de conhecê-la. Acho que foi a poesia.
- Não! Você viu meus poemas?
- Vi e gostei muito.
- Mas são muito ruins!
- Se você achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. Eles só estavam dobrados.
- Se eu soubesse que você ia ler...
- Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando. Se bem que, não sei: o lixo da pessoa ainda é propriedade dela?
- Acho que não. Lixo é domínio público.
- Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?
- Bom, aí você já está indo fundo demais no lixo. Acho que...
- Ontem, no seu lixo...
- O quê?
- Me enganei, ou eram cascas de camarão?
- Acertou. Comprei uns camarões graúdos e descasquei.
- Eu adoro camarão.
- Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente pode...
- Jantar juntos?
- É.
- Não quero dar trabalho.
- Trabalho nenhum.
- Vai sujar a sua cozinha?
- Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora.
- No seu lixo ou no meu?»

Dez Coisas que Levei Anos Para Aprender

Dez Coisas que Levei Anos Para Aprender


1. Uma pessoa que é boa com você, mas grosseira com o garçom, não pode ser uma boa pessoa.


2. As pessoas que querem compartilhar as visões religiosas delas com você, quase nunca querem que você compartilhe as suas com elas.


3. Ninguém liga se você não sabe dançar. Levante e dance.


4. A força mais destrutiva do universo é a fofoca.


5. Não confunda nunca sua carreira com sua vida.


6. Jamais, sob quaisquer circunstâncias, tome um remédio para dormir e um laxante na mesma noite.


7. Se você tivesse que identificar, em uma palavra, a razão pela qual a raça humana ainda não atingiu (e nunca atingirá) todo o seu potencial, essa palavra seria "reuniões".


8. Há uma linha muito tênue entre "hobby" e "doença mental".


9. Seus amigos de verdade amam você de qualquer jeito.


10. Nunca tenha medo de tentar algo novo. Lembre-se de que um amador solitário construiu a Arca. Um grande grupo de profissionais construiu o Titanic.




Luís Fernando Veríssimo

A arte como fuga


A arte é, na minha opinião, o espaço privilegiado da utopia e da vida. O dicionário Aurélio* define arte como arte  a [...] Atividade que supõe a criação de sensações ou de estado de espírito de caráter estético carregador de vivencia pessoal e profunda, podendo suscitar em outrem o desejo de prolongamento ou renovação (p.201).
Duas coisas são relevantes nessa definição, a primeira é a criação de sensações ou do estado de espírito de caráter estético, nós ou pelo menos os artistas são capazes de uma luz na escuridão e conseguem transformar uma vivencia pessoal em algo que realmente vale ser vista, lida, escutada ou simplesmente sentida.  A segunda diz respeito ao prolongamento ou a renovação em outrem. A contemplação de tais sensações já vale uma vida.
A vida é mais reconfortante através da arte. Talvez essa seja a única maneira de nos sentirmos mais humanos.
Volto a falar sobre artes e o conceito de arte em outras postagens.

*FERREIRA, Aurelio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. São Paulo, 3ed, 2004.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Metamorfose ambulante


Estamos a um byte de nós mesmos, e distantes da nossa vida obsoleta. 
Nada mais sugestivo de recuperar o texto abaixo, pois todos os dias nós nos recriamos para uma nova manhã!
Espero que gostem!


Traduzir-se
(Ferreira Gullar)
 

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
alomoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
_ que é uma questão
de vida ou morte _
será arte?


domingo, 29 de janeiro de 2012

Quem lê blogs?: ou o diálogo de surdos

Desconheço os números atuais, mas creio que não erro ao afirmar que devem existir dezenas (se não centenas) de milhões de blogs mundo afora. Algo me intriga: quem os lê?

Fala-se, há tempos, de uma crise da leitura, no Brasil e noutros países. Muito material escrito produzido; poucos leitores efetivos. São várias as causas dessa suposta crise e não vou aqui investigá-las. Para meu objetivo momentâneo basta especular sobre o que leva alguém (e, no caso deste espaço, um grupo de pessoas) a apresentar textos para leitura na imensidão da blogosfera, inserida, por sua vez, na vastidão quase infinita da World Wide Web.

Diversos são os tipos de blogs, mas três deles são mais comuns:
  1. Blogs "personalistas": incluem relatos ou imagens relacionados ao cotidiano ou à vida privada de um indivíduo (são os mais idiotas, em meu ponto de vista; os dois abaixo são melhores).
  2. Blogs "temáticos": são organizados a partir de um assunto específico - culinária, esoterismo, traquitanas tecnológicas, Filosofia, Cinema, etc. Podem ser fonte alternativa de informação e costumam refletir a profissão, o interesse ou o hobby de seu(sua) proprietário(a).
  3. Blogs "artísticos": veiculam criações/produções elaboradas pelo(a) proprietário(a). Mais frequentemente, poemas, contos e outros textos com pretensão literária.
O acesso à Internet possibilitou a qualquer pessoa divulgar o que quiser por meio da escrita (ou outra forma de linguagem, é claro). Não preciso dizer que há (muito) lixo misturado a (poucas) boas realizações. No que resultará este Esboços Cotidianos? Fica a pergunta ao(à) eventual leitor(a).

E por falar em pergunta, voltemos àquela do primeiro parágrafo: quem lê os blogs atualmente produzidos? Sem responder diretamente, arrisco dizer: são pouquíssimos os que leem na íntegra o conteúdo das postagens por ventura encontradas ou solicitadas.

Na blogosfera, vivemos uma situação próxima do surrealismo: há mais material escrito do que gente disposta a lê-lo. É o diálogo dos surdos. Todos querem falar (escrever), mas ninguém se coloca, mesmo de vez em quando, na condição de ouvinte (leitor). Em outras palavras, quase não há intercomunicação.

Pensando bem, por que entrei nessa?