Estou chegando a Olímpia – ano de 776, a.C.. Venho de Atenas, de onde saí, há cerca de duas semanas, trazido por um sonho. Só Deus sabe quanto penei ao longo da travessia. Trago os pés cobertos de bolhas d`água. Caminhei horrores pelo deserto de Arcadia, árduo chão de pedras repisadas. Hoje de manhã, quase ao final da viagem, ao tentar colher uma tâmaras, escapei de uma boa: fui atacado por um enxame de abelhas. Mal tive tempo de pular dentro d`água. Mergulhei no rio Alfeu pra salvar minha pele, minha vida.
Olímpia está tomada de visitantes. É gente que vem dos mais distantes lugares da Grécia. São artistas, charlatães, camponeses, mágicos, pescadores, filósofos. Todos, como eu, vieram para os Jogos Olímpicos que começam hoje. Melhor dizendo, recomeçam hoje. Os Jogos estavam suspensos há centenas de anos, segundo me conta um pastor de ovelhas chamado Fídias que, diga-se de passagem, não tem qualquer parentesco com o escultor Fídias, o qual, aliás, ainda nem sequer nasceu. Coisa engraçada: o tempo por aqui, conta-se pelo avesso. É o caso do próprio e renomado escultor Fídias que nasceu no ano de 490 a.C. e morreu no ano de 432. – Os gregos de outrora morriam antes de nascer…Os Jogos ressurgem neste belo dia de sol e caem justamente na primeira lua cheia seguinte ao solstício do verão. Respeita-se, assim, o ritual dos Jogos, criados pelo rei Penélope para homenagear os camponeses, durante a colheita das uvas.
O dia está nascendo em Olímpia. Já começa a chegar muita gente ao estádio. À primeira vista, a pequena multidão lembra um bloco fantasiado de grego no carnaval carioca. Vestem todos saiotes e túnica, com uma discreta tiara de pano cingindo a cabeça. Não vejo uma só mulher na torcida. Fídias me explica: é proibido! Mulher não pode assistir aos Jogos. A única que tentou driblar a lei foi a mãe de um atleta. Ela era treinadora do próprio filho e entrou na pista disfarçada de homem. Descobriram e foi o diabo! A pobrezinha só não morreu atirada num precipício porque era filha de um herói de guerra. Mas, desde então, para evitar novas astúcias femininas, o atleta é obrigado a competir nuzinho em pelo. Na pista, seja atleta, treinador ou mesmo juiz, a ordem é todo mundo nu.
A idéia de realizar os Jogos Olímpicos da Antiguidade de quatro em quatro anos é rebento de muitos pais. Um deles teria sido Hércules. Corre em Atenas que, um dia, Augias, rei de Élida, confiou ao gigante Hércules a tarefa de limpar os mal-cheirosos currais da cidade. E prometeu recompensá-lo com um saco de ouro. Hércules, então, meteu mãos à obra: escancarou as porteiras dos estábulos, soltou os três mil bois que lá viviam porcamente e, com a força gigantesca que os deuses nunca lhe negaram, desviou o leito do rio Alfeu, fazendo que a correnteza arrastasse em poucas horas toda a sujeira dos estábulos. Foi a primeira obra realmente hercúlea de uam criatura humana.
Na hora de honrar a palavra, o rei Augias roeu a corda. Disse que não ficara nada satisfeito com o resultado do trabalho. Hércules, com toda razão, virou uma fera e, sem mais aquela, despachou o monarca, cravando-lhe no peito uma lança mortal. Por sinal, a mesma lança com a qual matara, dias antes, o leão de Nemeas. No dia seguinte, Hércules celebraria a façanha, disputando com os quatro irmãos, uma corrida de 600 pés de distância.
Hoje, não haverá competição. O programa limita-se à abertura dos Jogos, com o juramento dos juízes e dos atletas. Amanhã, a disputa começa com o Pentatlo. Meu amigo Fídias, um verdadeiro apóstolo dessa religião chamada olimpismo, sabe-se de cór o regulamento dos Jogos. São 14 artigos, o primeiro dos quais reza que escravos e estrangeiros não podem competir; o quinto proíbe mulher de assistir aos Jogos; o sétimo diz que nenhum atleta pode matar seu adversário; o décimo terceiro avisa que qualquer participante tem direito de recorrer ao Senado, em Atenas, contra a decisão dos juízes.
São oito da noite. Estou exausto, Fídias também. A cerimônia de inauguração dos Jogos Olímpicos foi bem o que imaginávamos. Um espetáculo solene e emocionante que terminou com um belo entardecer: de um lado, o sol deitando no céu uma colossal vermelhidão; do outro lado, a lua chegando, olimpicamente.
(Armando Nogueira)